
A linha que separa o som humano do artificial está se desfazendo, e talvez já seja tarde para perceber. Uma pesquisa global encomendada pela Deezer e conduzida pela Ipsos revelou que 97% das pessoas não conseguem distinguir uma música feita por inteligência artificial de uma composta por humanos. É o tipo de dado que soa técnico, mas que, no fundo, toca em algo essencial: nossa capacidade de reconhecer emoção quando ela vem de uma máquina.
O estudo nasceu de um fenômeno que vem se tornando impossível de ignorar. A Deezer, uma das principais plataformas de streaming do mundo, recebe hoje cerca de 50 mil faixas totalmente geradas por IA por dia, mais de um terço de todo o conteúdo enviado à plataforma. A maioria nunca chega a um ouvinte real. Parte é criada por curiosidade, parte por oportunismo: faixas automatizadas que tentam “enganar” os algoritmos para gerar reproduções falsas e lucro fácil.
Mas o dado que mais chama atenção não é técnico, é humano. A imensa maioria das pessoas não percebe diferença entre o que é natural e o que é sintético. Sete em cada dez entrevistados se disseram surpresos com o resultado, e metade relatou desconforto ao descobrir que não conseguiu distinguir o que era uma voz real de uma simulada. Em um mundo em que a IA já canta, compõe e emociona, surge a pergunta: o que exatamente estamos ouvindo quando damos play?
O público, ao que tudo indica, quer transparência. A pesquisa mostra apoio quase unânime à ideia de que músicas feitas por IA devem ser identificadas como tal — e que artistas reais devem ser protegidos e remunerados de forma justa quando suas obras são usadas para treinar sistemas generativos. É uma demanda ética e emocional: não se trata de negar o avanço tecnológico, mas de preservar o valor da autoria e do trabalho humano por trás da arte.
No Brasil, os números ganham tons de contradição. Somos o país com maior curiosidade sobre o uso da IA na música (76%), mas também entre os que mais expressam medo de que ela reduza a criatividade e ameace a remuneração dos artistas. É o retrato de um público que abraça a inovação com entusiasmo, mas não sem desconfiar do preço cultural que ela pode cobrar.
A verdade é que a música, talvez mais do que qualquer outra forma de arte, depende da imperfeição humana, que hoje, temos ainda mais medo de mostrar. Do timbre que falha, da pausa que escapa, do sentimento que não cabe na métrica. E é justamente isso que os algoritmos ainda não aprenderam a imitar. Se 97% de nós já não conseguem perceber a diferença, talvez a pergunta não seja o que as máquinas estão fazendo com a música, mas o que nós estamos deixando de sentir quando elas a reproduzem com tanta perfeição.
* Este artigo reflete a opinião do autor