Entre bonecas e sexo


Estou na rua Tuiuti, no bairro do Tatuapé, zona leste de São Paulo, em frente ao prédio que é um dos últimos da rua. Aperto o número do apartamento, me identifico e a moradora avisa que já está a caminho. Pouco mais de dois minutos depois uma senhora abre a porta. Ela é bem pequena, não deve medir mais do que 1,60, tem pele negra, cabelos pretos, curtos e lisos, resultado de uma escova muito bem feita, acredito. O batom vermelho dá destaque ao seu rosto. Ela me recebe com bastante alegria, um largo sorriso e um abraço apertado. Subimos um lance de escadas em direção à sua casa. Ela vai me perguntando como estou entre outras questões típicas de um começo de papo tímido. Ela é Edileuza Teixeira. Chegamos em frente ao seu apartamento, peço licença, entro e cumprimento um senhor e um jovem que estão conversando animadamente no sofá. Eles são seu marido Romualdo e o sobrinho que está treinando para ser jogador de futebol. Ele é do Nordeste e está em São Paulo temporariamente.

Pergunto se podemos começar a conversa e já sugiro a cozinha, um lugar silencioso em que não seriamos interrompidas. Além disso, ficaríamos frente a frente. Posso olhá-la nos olhos enquanto falamos. Aproveito e aviso:

– Dona Edileuza, já coloque dois copos de água na mesa para senhora poder molhar o bico. A conversa vai ser longa!

– É verdade, você não está com pressa né? Tem algum compromisso depois daqui?
– Não, não tenho nada marcado, temos o tempo que for preciso para você contar sua história.

Ela ri, vai à geladeira e pega uma garrafa de refrigerante e deixa dois copos da bebida sabor laranja em cima da mesa. Ela falou por cerca de uma hora e meia, mas curiosamente o meu copo acabou primeiro. Eu também mais ouvi do que perguntei. Era como se ela tivesse tudo na ponta da língua, pronto para mim. 

Edileuza têm 49 anos de idade, mas aparenta ter menos. É empresária, possui uma corretora de seguros. 
Tem um olhar sereno, mas seguro, um rosto muito bonito e iluminado.
Em menos de um minuto de conversa, descubro que nem sempre foi assim.
Edileuza Teixeira Jesus nasceu em 1963, numa família pobre que morava no município de Imperatriz, no estado do Maranhão. Na época, um povoado com cerca de 1.500 pessoas.

Desde pequena ela conheceu o inferno por meio de uma prática comum, não só naquele povoado, mas em vários outros, principalmente no Norte e Nordeste do Brasil: o abuso sexual, que ela sofreu desde os 9 anos de idade pela pessoa que deveria protegê-la e amá-la: o próprio pai. “Lá a pedofilia era comum. Todo mundo sabia que isso acontecia, mas ninguém falava nada. Quase todas as meninas da minha época passaram por isso. Muitas vezes enquanto brincávamos na rua algum adulto aparecia e conseguia abusar da menina ou algum menino que também estivesse brincando com a gente, um tio, um primo. Mas não havia denúncia, porque isso era normal, comum”.

O pequeno povoado também escondia um comércio monstruoso: a prostituição de meninas. Além de ser abusada pelo pai, ela também foi vendida. Ainda criança, acabou se tornando prostituta. 

“Fazendeiros ou políticos poderosos da região iam até minha casa, diziam para meu pai que eu ia para o município vizinho trabalhar nas eleições ou em outras funções e que voltaria no dia seguinte. Mas no caminho eles paravam no matagal e começavam os abusos.

Tudo acontecia da mesma forma sempre: íamos para o banco de trás do carro, me faziam deitar no peito deles, iam fazendo carinho no cabelo, no rosto e descendo. Passando a mão em mim. Não tinha peito, nem pelo. Pegavam a minha mão e faziam eu segurar o pênis, masturbar, chupar. Tinha que deixar eles me tocarem e beijar o corpo todo. Isso rolava durante a noite toda”. Algumas lágrimas escorrem do seu rosto. Do meu também. É muito difícil ouvir ela contar tudo isso, ao escrever esse trecho da reportagem também me sinto bastante incomodada.

Curiosamente ela só deixou de ser virgem aos 12 anos. “Na cabeça deles eu era muito criança, então não havia penetração porque eles não queriam me estuprar. Mas eles já haviam estuprado minha mente”.
Essa vida acabou levando ela a se tornar viciada em álcool, cigarro e drogas. Os próprios clientes ensinaram ela a gostar de tudo isso, o que, em muitas vezes, era seu pagamento. Outra forma de comprar o serviço era com iogurte “Não tinha Danone na minha cidade, só na capital, São Luís. E como eles eram homens de negócio, que viajavam muito, sempre traziam pra mim. Era como pagavam pelo serviço”.

Com 9 anos, Edileuza era prostituta. Com 10 já fumava e bebia ao ponto de ficar bêbada. O pai sabia de tudo, deixava ela ir mesmo com a desculpa esfarrapada. A família era pobre e o dinheiro do trabalho dela ajudava nas despesas. Para você ter uma idéia, ela e os irmãos só ganhavam roupa nova uma vez por ano, no Natal. O pai comprava alguns metros de tecido, para fazer roupas para eles. O tecido com xadrez azul se tornava um conjunto de camisa e shorts para os meninos. O pano branco com bolinhas vermelhas era a blusinha e saia das meninas. Mas Edileuza queria ser diferente. Um dia pediu para a costureira fazer um vestidinho em vez das peças típicas. Voltou para casa mais feliz do que de costume.

Ao fim dos programas ela mostrava a criança que era. A criança que se sentia triste, perdida, machucada física e emocionalmente. “Uma vez eu chorei com o pênis do cliente na mão, disse que não queria fazer aquilo. Tive essa resposta: ‘Como você não quer sua vagabunda? Você sempre faz isso, você é minha putinha e se não fizer eu estouro seu pai de bala’”.

Eu tinha pouco entendimento do que significava essa vida. Eu sabia que muitas coisas ali não eram certas, nem normais, mas o que eu podia fazer? Quando você entra nessa você só sai se for pra ser presa ou morta. Vi várias amigas morrerem por terem recusado fazer programas. Os caras se consideravam nossos donos. Eles diziam ‘Se você não for eu mato seu pai, mato você’. Mesmo quando eu era pequena, antes do programa, eles tiravam a arma e deixavam bem a vista. Isso era um recado ‘Se você não fizer o que eu quero eu te mato agora’”.

Nesse momento Edileuza faz uma pausa. “Meu Deus me ajude”. Algumas lágrimas escorrem do seu rosto. Ela continua. “Com 13, 14 anos eu já estava totalmente presa nesse mundo, não tinha mais como sair mesmo. Todo mundo era meu dono. Políticos, fazendeiros, poderosos ou não, quem os chefes mandavam eu transar eu tinha que ir. Nessa quadrilha tinham muitos políticos envolvidos, até mesmo o padre da igreja do povoado sabia desse comércio, mas ninguém denunciava, todos tinham medo de serem mortos. Eu tentava me esconder, mas onde quer que eu fosse eles me achavam. Também não podia ter namorado. Meus relacionamentos duravam no máximo 15 dias. Se eles descobrissem que eu estava namorando um cara solteiro mandavam terminar, se não quisesse, morria eu e o garoto. Perdi vários bons casamentos por conta disso.”

Ela ainda faz algumas confissões sobre esse mundo tão criticado e misterioso. 
“Chega uma hora que a prostituição se torna um vício, igualzinho a droga. Você acaba se iludindo com o glamour e a fama. Eu era muito conhecida, fazia várias viagens com homens ricos e poderosos: políticos, advogados, professores, médicos. Ganhava vários presentes caros. Mas ela sempre termina por acabar com a vida da garota. Muitas sonham em casar, constituir família, ser mãe, mas lá a gente só servia mesmo pra ser usada e depois jogada fora.”

Com 18 anos ela foi vítima de uma tentativa de estupro. Quase morreu, mas conseguiu escapar. “Eu estava resistindo muito pra ele não me estuprar. Ele me batia, me mordeu muito, de arrancar pedaço da roupa e da carne. Com raiva ele tirou o revólver do bolso e disse ‘Eu sempre como antes de matar. Mas você vai ser a primeira que eu vou matar pra depois comer’. Ele ia enfiar a arma na minha boca, quando eu tirei forças, não sei de onde, e bati na mão nele. O tiro foi pra cima. Rapidamente, peguei nos testículos dele e apertei. Ele gritou de dor, consegui imobilizá-lo. Foi Deus.”, ela afirma.

Com 19 anos veio o primeiro filho. Não sabe quem é o pai. Para poder ter o bebê ela foi obrigada a casar para manter o bom nome da família. Um cara de São Paulo, com quem teve um relacionamento muito conturbado. Engravidou de novo, dessa vez nasceu uma menina. Ela teria outro menino, mas, por conta das agressões que sofria durante a gravidez, a criança nasceu prematuramente e morreu. O marido não aguentou a pressão e ameaças dos chefes da quadrilha, então voltou para São Paulo. 

Com o tempo as doenças foram surgindo na vida de Edileuza. Primeiro a depressão, que trazia o sentimento de vazio, um buraco no peito que nada preenchia. “Vivia chorando pelos cantos, não dormia, me mutilava e bebia sem parar. Carregava uma garrafa de pinga na bolsa que ia tomando durante o dia. Eu ficava o tempo todo pensando em como sair da vida de prostituta, mas não conseguia nenhuma solução. Tentei o suicídio 3 vezes. Depois, com 21 anos, descobri que tinha câncer na garganta, devido ao alcoolismo. Decidi então ir para São Paulo tentar tratamento e encontra meu ex-marido”.
Foram 4 anos de mais dor.

Humilhação e agressões do ex. Definhando a cada dia por conta das doenças. Escrava do vicio. Sem valor próprio. Sem autoestima. Só esperando a morte chegar pela doença, pelo suicídio, pelo ex ou pelos seus donos. “Ninguém sabia da minha dor, nada me consolava. Não tinha esperança de mudar de vida, isso era impossível aos olhos humanos, pois de alguma forma eu ia morrer”. 16 anos no inferno. Sua única perspectiva era ter uma morte injusta após uma vida toda de abusos.


Eu poderia encerrar o texto aqui. Muitas vidas realmente acabam somente assim: sofrimento e mais sofrimento, até que a morte chegue. Mas Edileuza tem muito mais para contar.

Você acredita em Deus? Se não, acho que a partir de agora você vai acreditar, pelo menos, que milagres podem acontecer.

“Tinha 25 anos quando uma vizinha me convidou para ir a um lugar que tinha uma pessoa que podia me salvar. Chorei. ‘Não tem mais jeito pra mim’. Mas ela insistiu, disse que lá havia um homem que me amava muito e me ajudaria a sair daquela situação. O que eu tinha a perder? Pior minha vida não podia ficar. Então fui. Era uma igreja evangélica. É impossível esquecer aquele dia. Era uma terça-feira às 10 da manhã. Um pastor orava para que os doentes fossem curados e os oprimidos libertos. Depois vi muitas pessoas dando depoimentos de que foram curadas, mostravam exames do antes e depois e várias outras coisas. Pensei ‘Se tudo isso é verdade tem que acontecer comigo também’.” E de fato aconteceu.

“Por conta do câncer quase não saia voz da minha boca. Eu falava chiando, bem baixinho. Durante a oração eu senti algo queimando na minha garganta. Tossi, pigarriei e senti sair algo dela, tinha gosto de sangue. Engoli, porque se cuspisse ia sujar o chão. Então comecei a falar normalmente! Eu ouvi minha voz! Estava curada do câncer. Fiquei tão feliz que passei o dia todo naquele lugar, só fui embora a noite quando a igreja estava fechando. Lá eu senti uma paz que nunca senti na vida. Naquele dia, depois de tanto sofrimento, eu conheci Deus de verdade. Uma pessoa que ninguém mais queria, que já tinha sido usada, maltratada, sem valor. Eu me achava a pessoa mais ruim do mundo, nada dava certo. Mas de repente nesse lugar tudo isso saiu. Minha vida mudou. Parei com a bebida e outros vícios, mudei minha mente e pensamentos”. 

Impossível não chorar. Mas mesmo depois dessa mudança radical, as coisas não foram fáceis. Edileuza, dessa vez, teve que enfrentar outro tipo de perseguição. “Meu ex começou a me ameaçar dizendo que se eu continuasse indo nessa igreja me mataria. ‘Você vai dar pro Edir Macedo é? Antes de você dar pra ele eu vou te comer’, ele me falava. Capangas dos meus ex-donos vieram atrás de mim, eu me sentia perseguida onde quer que eu fosse. Todo dia era uma guerra pra fugir desse mundo da prostituição que tentava me ter de volta. Mas eu não desisti. Pedia força pra Deus, pedia misericórdia, mas eu não aceitei mais voltar a ser prostituta. Até a família me virou as costas, meu próprio pai. Eu batalhei todo santo dia para ganhar dinheiro honestamente e não precisar vender meu corpo. Fui empregada doméstica, vendi cachorro quente na rua, sorvete, roupa, bijuterias. Fiz de tudo para pagar as contas e manter meus filhos. Trabalhei duro, mas nunca mais voltei para aquela vida.”

Com o tempo as coisas foram acontecendo. “Hoje eu vivo bem financeiramente, tenho casa própria, empresa, carro. O melhor de tudo: sou realizada em meu casamento. Meu marido é uma benção na minha vida, nunca se importou com meu passado. Ele me ama, me dá carinho, cuida de mim, é o meu homem e eu sou a mulher dele. Ele me traz segurança, me apoia. Deus foi tão bom comigo que eu fui a primeira namorada dele! Perdoei meu pai e cada agressor. Eu durmo bem, vivo feliz, tenho paz. O passado ficou para trás, já não traz mais dor.”

Mas Edileuza não guarda toda essa transformação de vida só para si. Ela também é voluntária no “Projeto Raabe”, criado na igreja que frequenta, que dá orientação jurídica e psicológica para mulheres que são vítimas de violência física, verbal e sexual. No projeto, ela atua como conselheira, conta sua experiência e como saiu da vida destruída que tinha. Hoje ela pode ajudar mulheres que passam pelo que ela sofreu um dia e dizer que há uma saída. ”Não tem jeito: se não tiver a ajuda de Deus é cadeia ou cemitério. Deus não muda só o lado de fora, mas o de dentro que é mais importante”. A conversa está chegando ao fim. Os copos de refrigerante já estão vazios.

– Agora me diz: quem é a Edileuza hoje?

Ela chora. Ela ri. Lágrimas misturadas com um riso aliviado, gostoso.

– Hoje eu sou a pessoa mais feliz do mundo! Se eu pudesse falava isso para todo mundo, todo dia. Independentemente do meu marido, filhos, empresa, igreja, voluntariado… Independentemente disso tudo eu vivo rindo, cantando, eu vivo feliz. Porque eu vivo com Deus. Se eu estiver com Deus pode acontecer qualquer coisa, eu estou bem! Tudo se resume na fé. A fé é que leva a pessoa a mudar de vida, ela é quem capacita a pessoa para vencer. Se você quer mudar de vida, use a sua fé. Algo mais que você queira perguntar?

– Acho que não dona Edileuza. Para mim está perfeito!

Damos risada. Me levanto para abraça-la. Estou contente com o precioso material que tenho em mãos. Volto para casa pensando em tudo que ouvi. Como há homens maus. Como a vida parece ser injusta em alguns momentos. Tenho raiva. Quantas Edileuzas existem em nosso Brasil e no planeta? Quero mostrar a história dela para todos e denunciar as agressões que milhares de mulheres sofrem nas mãos da prostituição e da pedofilia. Como fazer isso? Mas algo me conforta. Os olhos de Deus estão atentos. Acho que podemos ser a mão d’Ele nesse mundo, fazendo a nossa parte. Denunciando agressores, resgatando pessoas, dando apoio, abrigo, ouvidos e atenção para vidas tão sofridas.

Ser uma vizinha amável que pode dar tudo que uma Edileuza mais precisa.

Por. Rafaella Rizzo
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